2007/01/02

À berma da estrada

O que me atraiu o olhar foram as calças de ganga. As tais que tão bem fazem realçar o mais belo que a natureza nos (lhes) deu! Por muito que a experiência renegue a primeira impressão, sobretudo nos pobres machos insensíveis às leituras imediatas, é da visão a avaliação inicial. Depois aproximou-se. Com andar firme, logo seguido da voz serena e sem hesitações. Descreveu a lista, sem rodeios informou o que já não havia e explicou que o leitão fora entregue duas horas antes, já estaria frio, mas podia ser aquecido no forno. Muito simpática. Sem ser minimamente subserviente.

Percebia-se que estava muito habituada ao trabalho, mas que a sua função era muito mais do que anotar e satisfazer os pedidos. Era bonita sem ser deslumbrante, até porque a noite anterior, de festa, devia ter sido longa e não ajudava à tarefa. Tinha a sala cheia, mas a sua boa disposição contagiava. Um relance para dentro do balcão revelava uma senhora mais velha, mas com evidentes semelhanças físicas com a heroína da minha história. Ela, a heroína, deveria ter alcançado a maioridade há meia dúzia de anos.

A minha mente perversa, se calhar até aguçada pela febre argumentista, já entrara em acção. Mas entreteve-se em considerações mais próprias do terreno adversário. Como poderia ela chegar ao fim do dia e ainda pensar noutra coisa que não fosse cair na cama para descansar? No entanto, quando a sala começou a ficar mais vazia lá teve mais tempo para se aproximar da mesa e comentar que as batatas fritas estavam um pouco passadas, mas que poderia pedir mais uma travessa, nem demorava muito. Ante a hesitação na resposta lá se dirigiu ao balcão e, de novo com voz tão firme quando serena, registou o pedido.

Fiquei quase perdido naqueles cabelos negros e apanhados, enquanto os imaginava soltos e esvoaçantes. Mas guardei aquela firmeza nos actos, sem desvios nem prepotência e na minha mente continua sem resposta a pergunta que não a tem: porque era tão difícil, há quase duas décadas atrás, reconhecer sinais tão evidentes? Naturalmente, o passar do tempo leva a nova interrogação: seria capaz de os reconhecer se voltasse às circunstâncias de então?
É também por isto que me atraem os restaurantes da berma da estrada.

5 Comments:

At 10:04 da tarde, Blogger Maria Arvore said...

Afinal, é encantador almoçar sozinho. ;)E tens toda a razão quanto aos jeans: realçam o melhor de cada gajo. ;))

 
At 2:26 da tarde, Blogger robina said...

Os restaurantes? Pois...

 
At 3:15 da tarde, Blogger pecado original said...

Já fui uma dessa meninas de balcão... como o mundo dá voltas. Hoje em dia não recebo pedidos mas faço-os, mas admito que nos restaurantes há muito que se lhe diga.
Gostei muito da tua narrativa, surpreendeu-me.

 
At 7:13 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Há vinte anos ainda era muito mal visto ser empregada de mesa e não havia tanta auto-confiança e as que a tinham chamavam-lhe arrogância.
Os tempos têm mudado, felizmente.

 
At 4:29 da tarde, Blogger Ness Xpress said...

Maria,

Quando uma bela voz me aguça o engenho, o meu pensamento voa à velocidade da luz...


Robina,

Haverá coisa melhor do que confortar o estômago? ;-)


Pecadora,

Assim sendo, perco a oportunidade de escrever sobre ti


Marta,

Se eu então soubesse o que sei hoje... (ai que argumento tão gastinho...)

 

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