2007/01/16

Pieguice

Sinto-te adormecer ao meu lado, o teu corpo quente encostado ao meu, sob os cobertores que tão bem sabem na refrega da batalha, após terem mais uma vez sido o impecilho inevitável. Combato agora os olhos que teimam em fechar-se, concentrando-me na música suave que ecoa baixinho pelo quarto e me transporta tantos anos para trás, até ao tempo em que me perguntava por este mesmo momento, pressentindo-o no futuro, ingenuamente enrolado, acreditava então, numa versão feminina da minha mente galopante. A música é a mesma, a dos slows envolventes com cheiro a noites de luar à beira-mar, o olhar, como se o pudesse ver, mas não é preciso, sabemos bem o que o nosso olhar revela em cada momento, bem mais difícil é enganá-lo para que lance areia aos olhos dos outros, aquele olhar já não é brilhante das saudades do futuro, expressão magnífica dos Trovante, mas cintilante do presente alcançado e da memória reconfortante do passado visionário. Então, era a sala imersa na penumbra, apenas a luz ténue dos números do sintonizador criavam o ambiente imaginário, com o copo ao lado, pouco cheio porque o objectivo era apenas um ligeiro estado de excitação.

Agora está a luz ligada, os olhos também comem e os nossos são uns glutões, o teu calor recorda-me as tuas formas, despida que estás ao meu lado, mas não preciso de levantar os lençóis, conheço-te ao pormenor, embora continue a ver-te como a primeira vez, sempre que tenho o imenso privilégio de te tirar a roupa. Afinal, estava redondamente enganado quanto à forma como me amarias, quanto à maneira como te amaria. Era muito novo, mais em sentimentos que em idade, por muito que tivesse lido não poderia saber que a tua entrega é proporcional ao somatório de todos os momentos da nossa vida, não apenas à centelha do momento.

Sim, estou a tornar-me piegas, também não é nada que não esteja nos livros, nos filmes ou nas músicas. Baixas a guarda à medida que me sentes menos agitado, ganhas-me para ti enquanto descubro cada novo detalhe de mim em ti, como se sempre soubesses o que quero, mas mo dês como um prémio por alcançar um novo nível.

E não quero adormecer, quero prolongar este momento, assim como há pouco senti que todos os teus músculos me puxavam para ti, agora apetece-me contemplar o teu sono descansado de entrega nas minhas mãos.

5 Comments:

At 5:42 da tarde, Blogger robina said...

Foi apaixonadamemte a puxar para o sentimento e...é uma raridade manter tão acesa a chama da paixão ao fim de alguns anos. Mas há os que como nós o conseguem :-)

 
At 11:26 da tarde, Blogger Maria Arvore said...

Caramba que até fiquei zonza com tanta lucidez apaixonada.

Concordo que a intimidade é uma sopa da pedra que nunca fica pronta mas que enquanto a vamos provando, sabe cada vez melhor.

E para aligeirar, se me garantires que existem mais 10 homens em Portugal que sejam capazes de subscrever o teu texto subo uns pontos na minha consideração ao género masculino. ;)

 
At 12:18 da manhã, Blogger Elipse said...

e eu, e eu....
... quase quase rendida ao encanto do amor expresso assim.

Existe mesmo?
(ai a descrença, depois da entrega e do desgaste dos anos sobre o sentir...)

assinam: as duas, em fusão de brinco mas também falo a sério; rio mas também choro. e mando bejo.

 
At 9:47 da manhã, Blogger Ness Xpress said...

Robina,

Há gente que nasce com o dito virado para a lua :-)


Maria,

Tu sabes qual é o maior mal dos homens: capazes, são, só que não admitem nem que a vaca tussa; e qual é a responsabilidade das mulheres, enquanto educadoras, neste comportamento?


Elipse,

Bem vinda e obrigado pelo comentário. Já fui espreitar. Mais uma dignitária da irmandade das perguntas sem resposta. A gente não tem culpa, não escolhe a data de nascimento. No meu caso só posso garantir que uma escrita destas acontece apenas quando potenciada. E neste momento escrevo assim.

 
At 9:56 da manhã, Blogger pecado original said...

Isto é sem duvida absolutamente apaixonante.

 

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