2008/10/09

À beira-mar

Já não era cedo, contrariando os horários matinais que tanto gostava de praticar sempre que não dependia de terceiros. Mas o dia tinha-o contemplado com as condições que pretendia, prolongando-as até à hora em que parou o automóvel e recebeu o ar fresco da intensa brisa marítima. Antes de sair do carro decidiu, num impulso intuitivo, baixar o vidro do lado direito com o objectivo de provar logo ali que o dia se reservava ao deleite dos sentidos. Sentiu-a a inspirar mais demoradamente e saboreou a primeira vitória.

Tinham-se encontrado algum tempo antes, num local ainda distante. Ela não sabia para onde ia, sabia apenas que era à beira-mar e que o tempo ia parar. E mesmo essas informações tinham sido arrancadas e ferro e só disponibilizadas como forma de aguçar a imensa curiosidade feminina.

Saíram para a esplanada de madeira sobre a praia, o tempo frio mas seco, levemente ventoso, o sol liberto de qualquer farrapo branco no horizonte, o céu de um azul límpido e brilhante, o mar azul salpicado com espuma branca sobre as rochas. A maré estava vaza, intensificando o cheiro marinho e emprestando ao local a atmosfera necessária para uma longa conversa onde não havia temas definidos, vaguearia ao sabor de cada variante que fosse sendo introduzida.

Ela adivinhara os seus gostos de bota-de-elástico, por mais moda que houvesse apreciava sempre uma blusa branca, jeans justos mas pouco ousados, botas de cano alto e casaco de couro castanho. Ele estava igualmente casual, mas em estilo mais sóbrio, calça azul, camisa branca e blazer cinza escuro. Sentaram-se lado a lado, contemplando o horizonte profundo à sua frente. Pediu o segundo café do dia, no mau hábito de negociar à custa da cafeína os momentos de tensão a que se expunha. De seguida, com um sorriso dissimulado nos lábios, reforçou a encomenda com o refrigerante dos tomates que sabia ter um significado de provocação naquele contexto. Aquilo com que não contava era que a sua companhia o acompanhasse no pedido, ficando agora em posição mais favorável no campeonato do sorriso trocista.

À medida que a conversa evoluía a posição de cada um na cadeira foi-se tornando mais esticada, revelando o à-vontade crescente com que foram abordando os temas mais diversos, dos profissionais aos da economia, dos interesses lúdicos à mentalidade fechada da educação judaico-cristã. De vez em quando ele lançava uma provocação velada, às quais ela passou a responder dissimuladamente a partir do momento em que as suas pernas faziam já um ângulo inferior a 45º relativamente à horizontal.

Foi quando ele desviou a conversa para a costa magnífica que contemplavam e referiu as casas centenárias que polvilhavam a região, acrescentando o prazer que sempre acompanhava os seus passeios pela ruas estreitas e tortuosas das aldeias, mera introdução para o convite à observação da paisagem do ponto alto e pouco afastado das suas costas, na capela da Senhora da Guia. Ela assentiu, pelo que pagaram e regressaram ao carro. Entraram, o sol tinha aquecido o interior, tiraram os casacos, ela tirou os óculos de sol enquanto tentava alinhar o cabelo revolto pelo vento e deu com os olhos dele que viam o mar reflectido nos dela. Pressentindo que ela procurava o sol nos seus olhos, inclinou-se e provou-lhe os lábios frios, pouco seguro de não estar a ser precipitado. Durante o movimento de recuo viu como ela saboreou o gosto dele com um rápido humedecimento dos lábios e percebeu que o contacto não tinha tido a duração suficiente para ela formar uma opinião.