2007/10/22

Domingo de manhã

Deu-lhe um toque para o telemóvel. Por tique, porque era assim desde há muito tempo, embora num contexto completamente diferente. Como de costume, Lígia desligou ao segundo ou terceiro sinal. Mas se até então o gesto queria apenas dizer que não tinha adormecido, agora era sinal de que aceitara o convite de Francisco.

Durante a semana, em mais uma longa deslocação a dois de carácter estritamente profissional, tinha deixado escapar que os filhos passariam o fim-de-semana com o pai, tempo que ela aproveitaria para descansar. Foi nessa altura que Francisco decidiu que era altura de terminar o longo período de estabilização que tinha estabelecido no momento em que Lígia se separara e ele concluíra que não se perdoaria se não tentasse dar o passo que há muito povoava o seu imaginário. Esperou pacientemente pela tarde de sexta-feira e, na precisa altura em que ela, como habitualmente, lhe desejava um bom final de semana, convidou-a para um café com cheiro a mar na manhã de domingo.

Lígia respondeu-lhe que precisava de uma cura de sono, Francisco retorquiu que lhe daria um toque quando saísse de casa. De rajada, ela reforçou que não iria a lado nenhum. Mas conheciam-se há tempo mais do que suficiente para saberem ambos como interpretar as palavras do outro. Ela nunca se comprometia, mas sabia bem como recusar sem margem para dúvidas o que não lhe interessava. Ele insistiria até ao ponto de esgotar a situação sem causar mal estar.

Tinha acordado cedo, quer por hábito semanal que, com o tempo, passara também para os dias de descanso, quer pela ansiedade do encontro. O estado do tempo parecia colaborar com o plano que desenhara. Preparou-se sem pressas, dando o tempo suficiente para encontrasse o café aberto. Saiu de casa e parou, uma vez à porta dela. Deu novo toque para o telemóvel. Lígia atendeu e respondeu que ia descer. Pareceu notar-lhe um ligeiro tremor na voz, mas como era disso que estava à espera decidiu não o valorizar. Teria muito tempo para a observar fora do ambiente habitual em que se moviam.

Estava deslumbrante, pelo menos a seus olhos que não pediam cenários idílicos nem cortes de alta costura. O bâton que durante a semana reservava às reuniões e eventos importantes realçava-lhe agora ainda mais os lábios, devolvendo-lhe o ar inatingível que estava esbatido desde que a separação se tornou iminente. Continuava a ser uma bela mulher, para além da segurança e da maturidade que sempre o impressionaram. Mais uma vez ficou a pensar se o seu julgamento não era afectado pelo que os olhos não conseguiam calar.

Decidiu levá-la ao local mais preservado da costa metropolitana, tão perto que é capaz de surpreender pelo inesperado. Chegaram e levou-a para a esplanada, enquanto pedia sumo de laranja natural e torradas. A manhã estava perfeita, o sol anormalmente quente de Outubro fazia lembrar a música de outro mês de Neil Diamond que subitamente se apoderara da sua mente, felizmente o timbre rouco do cantor não chegava aos ouvidos, continuava a ser um romântico envergonhado. O mar estava um pouco agitado, a maré-alta não fazia desprender os odores fortes das algas, talvez o único senão do cenário. As gaivotas volteavam na areia, alguns vultos madrugadores deambulavam junto à água.

- Como é que nos conseguimos esquecer que estes paraísos estão aqui tão perto...
- Da mesma forma que nos esquecemos que as melhores coisas da vida são muito simples.

Percebeu o ligeiro estremecimento, viu duas lágrimas inundarem a parte inferior dos aros dos óculos de sol de Lígia e percebeu que tinha muito trabalho pela frente. Mais uma vez jogava no fio da navalha, mas não sabia viver de outro modo.

2007/10/10

Momentos perfeitos

Teria que ser Outono, afinal as mentes estariam mais despertas pelo cheiro intenso dos pinheiros húmidos, o vento fresco tornaria os beijos mais quentes, as ondas revoltas acentuariam os suspiros mais profundos e mostrariam ao coração como acelerar o ritmo cardíaco e libertar a tensão tanto tempo acumulada.
Até o sol decorou o papel na perfeição, tímido apenas como forma de disfarçar a certeza de saber exactamente como se comportar. E a chuva, essa madrinha benfazeja, cuja melodia tão bem sabe embalar os momentos mais perfeitos.